Ofendiferenças Infectocontenciosas
A pedido de famílias deste e daquele apelido, Gémeo Luís desenhou uma pista multifuncional e Eugénio Roda puxou por um conto tradicional.
Os Ramos eram um casal singular. E plural. O que não era bem um bem nem bem um mal. Os Ramos ramificaram mas os que ali nasceram, ali não ficaram, vários rumos tomaram, carregados de «memos» em barcos a remos [está tudo nos resumos]. Os Ramos sofriam de problemas crónicos e dilemas agudos, disfarçados de «afinal e coisa e tal». Não havia dia nem hora nem minuto em que a discórdia não se pavoneasse pela casa e pelo casal, no seu relativo absoluto, até ficar em brasa. Mas também havia muita, muita água na fervura, muita ternura, muita caricatura. Quando a senhora Ramos dizia «vou dar um passeio», o senhor Ramos inquiria «a quem vais dar um passeio?». E enquanto um se fingia mouco, o outro fazia-se surdo. Enquanto um se mostrava douto, o outro roçava o absurdo. «Então e o passeio?», perguntava ele, com vã persistência. «Passei-o!», respondia a mulher, com sã paciência. Os Ramos agarravam-se às palavras para com elas se agarrarem a si, a sós, consigo, entre si. E mantinham a conversa, mesmo que fosse em língua dispersa. De assunto em assunto, nem chegavam a aquecer o assento:
«Ah e tal e mesa e cadeira e cama… e leito! Eleito? Quando vai ser eleito?»
«Ah e tal e lê e copia… e dita! Edita? Que livros edita?»
«Ah e tal e puxa e muda e traz… e leva! Eleva? Como é que se eleva?
«Ah e tal e agitado e mau e cruel… e terno! Eterno? Quem é que é eterno?
«Ah e tal e tudo desfeito e por fazer… e feito! Efeito? Efeito de quê?
«Ah e tal e pato e pata e gato e gata e rato… e rata! Errata? O que é que está na errata?
«Ah e tal e sol e nevoeiro e chuva e neve… e vento! Evento? Qual evento?»
E assim por diante, numa vertigem contagiante. E asfixiante, irritante, degradante ou interessante, consoante o ponto de vista: o do ativista ou o do arquivista. Tornou-se imperativo avaliar o mal-estar comunicativo. E o terapeuta da fala fechou-os numa sala: «O senhor e a senhora são homofónicos». Os Ramos entreolharam-se através da folhagem da sua surpresa. Sem pingo de fonema, pensaram na heterofonia em que tinham vivido a vida inteira. Mas… e as pessoas? O que vão pensar as más? O que vão dizer as boas? Não era nenhum drama, só tinham que afinar o programa, esclareceu o médico, com um olhar quase enciclopédico.
Os Ramos assumiram a homofonia. E a vizinhança entrou na dança. Apenas metade estava reticente mas foi agarrada e bailou, sorridente. «Entre tanta gente com trato diferente…» pensava a mulher, «… o contrato diferente é e não é para toda a gente», rematava o homem {sem saber bem o que dizia mas bem sabendo o que fazia]. Ela trazia tudo na boa mas ele levava tudo a peito. E a sua derradeira harmonia foi atacada por uma estirpe da hegemonia [que dá em abanar a cabeça em sinal de reprovação e franzir o sobrolho até mais não e abrir as orelhas até Olhão e arregalar os olhos até Orelhão]: «Cambada de heterónimos, heterógrafos de um raio…», dizia ele olhando a vizinhança com desconfiança, «…Rodrigues e Silvas e Gonçalves e Matos e…». «E Ramos» interrompia ela, com heurístico-respeito-linguístico, por si e pelos outros. «Erramos? Voltamos a contar!».