O teste do velho, do rapaz e do burro

A pedido de muitas famílias a braços com o dilema, Eugénio Roda refrescou o tema e Gémeo Luís opinou sobre o problema.

Não faltam relatos do tempo em que as montanhas pariam ratos. Certa serra, farta de roedores, deu à luz [com mais dores] um velho, um rapaz e um burro. Assim, todos três e de uma só vez. Mais mês, menos mês, desceram os filhos do colo materno, encosta abaixo, até ao inferno. Um atrás, outro à frente, outro mais adiante, beliscaram gente beligerante: olha, olha, três burros, um que não sabe que o é e dois que pensam que não o são, por que razão vão todos a pé? Logo o velho colocou o fedelho sobre o animal. Mas, para mal dos seus pecados, outros se mostraram indignados: olha, vê, o rapazelho descansado e o velho, coitado, a dar ao joelho. Trocaram posições mas não se livraram dos sermões: eu até pasmo, por que vai à pata o petiz e o avô tão feliz, armado em asno? Só faltava levarem o burro às costas e assim fizeram e as opiniões choveram, outra vez opostas: olha, olha, dois burros que outra coisa não são e o terceiro, que o é, tratado como um irmão. Nem La Fontaine nem Esopo nos disseram aonde iam, o asno, o velho e o cachopo. Não sei se esta versão cola mas aonde podiam eles ir senão à escola? O fedelho, porque estava na idade, o velho, pela oportunidade e o burro, porque era burro, fosse a sua burrice mentira ou verdade. Vamos indo e vamos vendo. Entre muitos e tantos que iam repreendendo, constrangendo, ofendendo e corrompendo, eles lá iam aprendendo, compreendendo e até surpreendendo, contagiando quem quisesse ir alinhando. Mas era tal o apanágio que não demorou o referendo: acusados de falso prestígio e de sério contágio, os três foram chamados a cumprir o presságio.
Testaram-lhes a responsabilidade, a assiduidade, a pontualidade, a autenticidade, a disponibilidade, a lealdade, a cumplicidade e até a interdisciplinaridade. Tudo deu positivo. Só a imunidade foi negativa e a impunidade… criativa. Levaram velho e moço a tribunal, já que estas coisas não se tratam no hospital [ao burro, mandaram-no embora com um murro que o deixou à nora]. Testada a jurisprudência do local, deu relativo, testada a pertinência uni-focal, deu superlativo. Pensavam eles que iam ser vacinados, mas afinal iam ser interrogados [tanto teste trazia chacina em vez de vacina]. Longe do povo e em salas diferentes, velho e novo responderam a uma só pergunta, feita entre dentes: tens cão? O rapaz disse que sim, o velho disse que não.
E assim foram presos, por ter cão e por não ter.
No mural desta história, cabe agora toda e qualquer notícia, com tecnologia de ponta ou sem ponta de malícia. Não há mal que sempre dure nem sal que não sature. Talvez um dia a gente se ria do fado ultrapassado, lá para o século vinte e um, mais um, menos um. Talvez nesse tempo sensível e informado, tecnicamente sofisticado e definitivamente humanizado, tudo isto que agora vemos seja apenas passado.

Texto Eugénio Roda . lustração Gémeo Luís . 08-06-2020