Dicionário ilustraplicado convitemático
A pedido de todas as famílias regressadas de férias entre outras coisas sérias, Gémeo Luís tratou mais uma vez do ilustrário e Eugénio Roda, uma vez mais do palavrário.
A linguagem é a nossa maior doença. Mas é também o nosso melhor atestado de saúde. Doença porque nos inflige dor. Saúde, porque nos salva, conserva, preserva. Doença saudável, crónica, hereditária, in-sondável, é contraída intra-uterinamente. À nascença, começa a desenvolver-se atacando os aparelhos fonador e auditivo, atingindo irremediavelmente corpo e cérebro, dominando pensamentos, gesto, emoções. Alastra-se entre profilaxias, diagnósticos e terapias, motivando queixas formais e significativas, picos febris de sentido, melancolia poética, euforia publicitária, alucinações em presença e ausência. Admite silêncios de convalescença mas deixa marcas dizíveis e indizíveis. Sinais e signos pululam em cultura bacteriológica manuscrita ou impressa, circulam por transmissão oral, em surto viral arquipandémico.
Como seus hospedeiros, damos às palavras o conforto [e o desconforto] da viagem que fazemos juntos. Chamamos a taxinomia, indicamos o lugar à janela, arrumamos o seu significado na bagageira. O piloto automático assinala a rota e indica a direção mas somos nós quem dá sentido à viagem. Agora, é arrancar de novo: a emergência é das palavras mas a urgência é nossa.
A palavra Amigo é resistente ao perigo. A palavra Brincadeira habitua-se, contrariada, à sua cadeira. A palavra Calamidade espreita sempre, calada, com desumana naturalidade. A palavra Distanciamento tem um olho no comprimento e outro no cumprimento. A palavra Escola volta a colar-se quando descola. A palavra Família terá que aumentar a sua vigília. A palavra Gel fez-se convidada e amiga fiel. A palavra Hábito foi acordada à pressa, para mudar e ensaiar o texto depressa. A palavra Imunidade anseia viver em comunidade. A palavra Jamais muda de ideias conforme os dados mensais. A palavra Liberdade reclama assiduidade mas não pode descurar a pontualidade. A palavra Mão cancelou todas as provas de corrimão. A palavra Notícia perdeu o sono com uma insónia fictícia. A palavra Opinião quer conhecer mundo, tirar férias da reclamação. A palavra Pandemia passou no primeiro ano da academia. A palavra Quero aproveita para pensar melhor enquanto espero. A palavra Rua passou a servir-se em esplanada, bem ou mal passada. A palavra Solidariedade marca longos encontros entre a contabilidade e a dignidade. A palavra Tudo de nada serve nos casos de estudo. A palavra Urgente é, em toda a frase, a mais exigente. A palavra Vacina está habituada ao «v» de vida-e-vírus desde menina. A palavra Xisto descansa um eterno bocado na paz da paisagem que avisto.
A palavra Zelo repreende, no fim do dicionário, quem já passou pelo desmazelo.