A Moira Confinada

A pedido de muitas famílias em confinamento ativo ou desconfinamento relativo, Gémeo Luís encantou uma certa ideia e Eugénio Roda desencantou uma mini-panaceia. 

Confinada ao silêncio de morte, a moira esperava a sua sorte. Pelo casarão com dois livros na mão. Pelo corredor a espalhar mau humor. Sobre o canapé a escutar oboé. Ou prostrada ao espelho, com o corpo a erguer-se de novo e o pensamento a cair de velho. De nada valia mover-se nervosa ou andar ansiosa ou chorar desditosa. Maldizia o destino que lhe não trouxera, nem velho nem jovem nem menino com aquela coragem de grande inquilino [nem a associação de moiradores lhe acudia].Mas bateu ao portão um daqueles viajantes [mais vale que seja o quanto antes, porquanto se livra o leitor de entrementes], alguém contra quem o azar tudo tenta fazer, misturado com a arte de bem disfarçar. Ela abriu e mostrou-se agradável [mostrar, não mostrou, porque dela apenas a voz se revelou e, a ele, pareceu-lhe normal essa distância social]. Ele entrou, mais ou menos afável.  Ela disse: encantada! Ele disse: eu também!  [cá p´ra mim, ele não entendeu a coisa lá muito bem]. Ela indagou: por que andas por aí assim em tempo de cuidado? Ele ironizou: antes finado que confinado! E riu a bom rir, desinteressado. Ela apenas sorriu, evitando sair do seu memorando. Vamos andando.
Atravessaram a casa. Ele, pesado e cansado, ela, leve como uma asa. Ele, visível, de trato mui simples e apalermado, ela, invisível, de voz afinada e modo refinado [não sei muito bem se iam lado a lado porque só um deles era observado]. Até que encontraram um velho salão, que em tempos passados se erguera tão nobre e que os anos, cansados, tornaram tão pobre. Co´a mesa posta, ela deu-lhe mais uma resposta, desarmando toda e qualquer pergunta. Nestas coisas, o assunto não depende de quem o assunta mas de quem o besunta. O silencioso corpo da moira silenciava-se agora também na voz. E o riso do homem tornou-se mais sério quando se viu sozinho naquele mistério.Onde te meteste agora? Por que me deixaste em tão boa hora? Perguntou-se o infame rodando a cabeça até dar com um arenque sobre a mesa, que lhe sussurrou numa língua diferente [talvez arenquês]: Esqueça! E ele assim fez. Encolheu os ombros e nem se inquietou com os escombros. Até porque a fome apertava e o banquete fumegava. Ora, iguarias rima com azarias e foi um ver se te avias! Nem salmoura faltante faltou nem salmoira sobrante sobrou. O homem comeu e recomeu, bebeu e rebebeu. E cansou-se e adormeceu. E se o anel de oiro que trazia no dedo desapareceu, outro no seu lugar ficou.
Acordou, de repente, com o corpo dormente. E se logo estranhou, logo, logo entranhou. Devo ter sonhado ou, então, é agora que não estou acordado! Deu por si envolvido em seda e cambraia. E embora nada daquilo fosse a sua praia, deixou-se levar pelas ondas e folhos do mar. Assim baralhado, entre o sonho em vigília e o sono acordado, voltou a acalmar e a adormecer como quem tivesse bebido chá de tília. A noite ainda seria uma criança. Mas cresceu e fez-se adulta. E um vulto surgiu no escuro com dois olhos brilhantes como faróis a esconder os diamantes no branco dos lençóis. E o sobressalto acompanhou o grito com um salto: sempre queria saber se quem quer deitar-se comigo é homem ou mulher! Gritou o hóspede, entre o medo plausível de falar e o medo terrível de calar. Pedra, papel, tesoura, podia ser moura. Pedra, papel, tesouro, devia ser mouro. Nesse mesmo instante congelou-se a cena [não fosse a coisa tornar-se relutante ou obscena]: uma moira e um mouro sentados na cama, rodeados de ouro.
A fama é a nossa, mas o proveito é o teu, pega no oiro e safa o teu coiro, disse o mouro. E a moira moira explicou: milhares de anos, momentos insanos, pesares desumanos… durante o dia, moira, durante a noite, mouro… cada um na sua vez, sem saber um do outro, como vês… até que alguém viesse p´ra fazer isto a três… o que, aliás, é a conta que qualquer deus faz. Mas o que fiz eu? Quis saber o ateu. O teu papel foi levar esse anel do dia para a noite, com ousadia e afoite. E assim, da noite para o dia, mataste a nossa melancolia! Muito pouco tempo se passou. Moiro e moira desconfinaram. Mas o homem desconfiou, quando viu o agoiro, na fortuna que herdou: é tua, mas não deves gastá-la!
Não é tua, mas podes esbanjá-la!

Ilustração Gémeo Luís . Texto Eugénio Roda . 21-05-2020