História de que não apetece falar, pois acima de tudo apetece lê-la

“Como o título deixa adivinhar, a música constitui o tópico em torno do qual ganha forma esta narrativa a três mãos – a que compôs o texto e as outras duas: a mão que segurou o papel e a que fez os recortes, em filigrana. Deste minucioso trabalho de recorte despontam, como por encanto, as admiráveis ilustrações de O Piano de Cauda, livres, esvoaçantes e animadas de movimento, como frases musicais.

Ilustrações no limiar da sinestesia, onde se afirma, de novo, a linguagem singular de Gémeo Luís, a um tempo delicada e poderosa, construindo um espaço onde se cruzam memórias do Oriente, ecos diluídos de Chagall e um onirismo de pendor surrealizante que nos faz imergir no sonho.

O discurso de Eugénio Roda está, também ele, pejado de referências ao universo da música, mas impõe-se igualmente pelo carácter musical da escrita. Uma escrita que seduz pelo ritmo, aqui e acolá pela rima interna e pelo hábil recurso às suspensões da frase (ou seja a pequenos intervalos de silêncio). Mas que surpreende também pelo jogo linguístico (da homonímia, da homofonia e não só), jogo que desafia a inteligência de quem lê e abre inesperadas possibilidades de sentido.

Senão vejamos: o “diapasão” converte-se na unidade de tempo “dia – pasão”; o “sol”, nota musical, é simultaneamente a estrela que aquece e ilumina; e, de súbito, encontramo-nos num mundo cujas criaturas reclamam formas sintéticas, muito peculiares, de caracterização: o “homem pouco – pensador”, o rapaz com “o sorriso dos meninos – à – solta”, o pianista com “os ouvidos, a boca e os olhos na ponta dos dedos”, para não falar do piano de “sorriso sustenido”.

Disse bem: o piano, neste ambiente animista típico dos contos infantis, é uma criatura com alma, como quase tudo em O Piano de Cauda – história de que não apetece falar, pois acima de tudo apetece lê-la, primeiro em silêncio, depois em voz alta, ao som de música. É que as boas histórias não existem para ser explicadas, mas sim para ser contadas – como alguns gostam de dizer. E esta possui, além disso, a enorme virtude de nos fazer sorrir.”

José António Gomes