Afinar as emoções
O Piano de Cauda é um animal. Vive entre espécies, na harmonia do ecossistema. Mas, com a espécie humana, vai viver o pior e o melhor que ela tem para dar e receber. O pior agora não interessa mas está à vista no livro. O melhor – e que é apenas o possível num mundo que não anda para trás, e que tem a ver com uma coisa que gosta dos nossos ouvidos e se chama música, com muitos apelidos – são os dedos do pianista, que lá conseguem devolver ao Piano o que de mais próximo encontram da sua natureza inicial: transformando-o numa das coisas inanimadas mais parecidas com um ser vivo, um instrumento musical.
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OS AUTORES USAM ESSAS SENSAÇÕES DESENHADAS PELA MÚSICA NA NOSSA CABEÇA
“Normalmente quando oiço música há como que imagens que se formam, ambientes e espaços que mudam constantemente na minha cabeça. Como se o som transportasse códigos que ao entrar nos ouvidos se convertessem em imagens. Em “o piano de cauda” atrevo-me a dizer que o processo é inverso, os autores usam essas sensações desenhadas pela música na nossa cabeça e imprimem-nas, e escrevem-nas, como uma outra representação da música, não ouvida, não em pauta, mas da mesma forma sentida. A música, como todas as formas de expressão artística, precisa da aprendizagem mas também necessita de desaprendizagem. Muitas vezes explicar as coisas como elas são torna-as uma grande mentira para a imaginação. Podemos encarar este livro útil na actividade musical no sentido de reforçar esse olhar livre para música, que é tanto mais importante quanto se pretenda proteger uma relação emocional com a arte.”
Manuel Cruz
LIVRO PARA CRIANÇAS QUE FAZ TÃO BEM À GENTE GRANDE
É na secção infantil das grandes livrarias que se encontra este livro, normalmente escondido nas prateleiras entre muitos outros livros do género de boa (ou menos boa) qualidade que vão sendo produzidos em Portugal. É um lugar-comum dizer-se que damos mais valor às coisas que são feitas lá fora do que as nossas, mas isso não invalida a afirmação, e mais uma vez isto se repete no que toca à ilustração.
Somos um País de grandes ilustradores, de uma competência artística fora-de-série (e é exemplo disso os concursos Internacionais em terreno nacional como o Ilustrarte, mais o sem número de exposições e compilações), mas o terreno que a ilustração tem de escalar parece interminável, numa eterna luta pelo reconhecimento público do próprio produto. A ilustração luta com o problema da sua comparação com a escrita. O plano do ilustrador é muitas vezes remetido para o fundo, uma nota de rodapé, pressupondo que o seu trabalho é um simples “ilustrar” redundante do que está transposto nas palavras. Mas a ilustração contemporânea é tanto mais! Ela acrescenta ao texto, dá-lhe novos mundos e perspectivas e acentua a imaginação de quem vê e lê.
Disse que somos um País de grandes ilustradores, e isto é visível com uma simples olhadela à mesma secção infantil de uma grande livraria, na parte de autores nacionais. Independentemente do grande plano ser dado ao escritor da obra, procurem ver também quem a ilustrou e encontrarão nomes como António Modesto, Júlio Resende, Henrique Cayatte, André Letria, Cristina Valadas e o outro nome na capa do livro que vos falo: Gémeo Luís. O “Piano de Cauda” surge como um produto de simbiose profunda entre escritor e ilustrador. Gémeo Luís (Luís Mendonça), dá vida às palavras de Eugénio Roda (Emílio Remelhe), e vice-versa.
Tudo num mundo de imaginação de envolvimentos entre palavras, desenhos e os próprios autores. Uma cumplicidade que surge de uma amizade de longa data que transpira tão bem na obra que é este livro. A escrita de Eugénio Roda é viciante, poética e lê-se como se canta, dotada de imagens e jogos de palavras que lembram tão bem a imaginação infantil. Basta apenas o início do livro para nos mostrar uma janela do imaginário que acompanha todo o livro: “O Piano de Cauda vivia no mais harmonioso dos lugares. Todos os dias, cedo cedinho, corria ao espreguiçadoiro, que é uma espécie de miradoiro donde se vê o nascer o dia, e …dó, ré, mi, fá… o sol aparecia”.
As ilustrações de Gémeo Luís são de uma riqueza imensa, de formas subtis, orgânicas, feitas de papel recortado com uma delicadeza que transcreve toda a poesia do texto que as acompanha. Esses “desenhos” de papel recortado são acompanhados de uma pequena sombra que os enriquece e acentua essa subtileza. Este livro, para crianças que faz tão bem à gente grande, é poesia visual e poesia verbal juntos num objecto com a capacidade de nos transportar para um mundo de Sonhos. Recomendo a todos aqueles que ainda conseguem sonhar acordados e se apaixonar por formas e palavras.