Recortar e recordar mundos narrativos

O CRAT recebeu na Rua da Reboleira uma exposição de Gémeo Luís. Em paralelo com a exposição, o Centro Regional de Artes Tradicionais dirigiu um convite às escolas para uma oficina a estender-se por vários dias. O ilustrador foi convidado para uma das suas edições da Revista Mãos.

No texto «Recortar Mundos: a propósito da ilustração de Gémeo Luís», Emílio Remelhe, com quem o ilustrador desenvolve uma parceria de trabalho nos livros, escreveu:

[do papel do papel]

 Sobre o papel já correram rios de tinta. Douglas McMurtrie convida-nos a interpretar o mapa da sua viagem remota do Oriente para o Ocidente: “alinhai-o ao lado das principais datas da história da Europa e procurai visualizar tudo o que aconteceu na civilização europeia, enquanto o fabrico e o emprego do papel estavam a difundir-se tão vagarosamente”: China Central (105 d.C.), Turquestão chinês (Tun-Huang, séc II , Lou-lan, séc. III, Turfan, séc. IV), Caxemira (séc.VI); Samarcanda, Bagdade (séc. VIII); Egipto (séc. IX-X, quando o papiro deixou de ser usado); Marrocos, Espanha (séc XII); Itália (séc. XIII); Alemanha (séc. XIV); Inglaterra (final séc. XV quando passa abundar, trezentos anos depois do início do seu fabrico na Europa).

Estendido o convite até aos nossos dias, percorremos a grande epopeia que vai do papel enquanto sobrevivência da nossa cultura à sobrevivência do próprio papel: em aspectos como a sua reciclagem ou o seu convívio com a imaterialidade digital, pode colocar-se, ainda que provisoriamente, o lembrete de Kerkhove: “Hoje o nosso mundo está suspenso entre duas opções, a desintegração como em Babel ou a metamorfose como em Jericó”.

O recorte de papel contém os genes da experiência do desenho (início e reduto). Confirmam-no as práticas ancestrais como as pinturas rupestres pré-históricas, os desenhos de contorno a partir das sombras produzidas pela luz do sol na antiga Grécia, os recortes chineses iniciados na remota dinastia Tang, o teatro de sombras indiano e respectiva disseminação, a projecção de marionetas egípcia); confirma-o (entre o factual e o lendário) a narração de Plínio sobre a invenção do desenho; confirma-o a idade moderna do desenho com o investimento renascentista florentino na linha, no contorno, no domínio sobre a forma; confirma-o ainda a dimensão vectorial do desenho digital.

No ocidente europeu, o recorte, a silhueta, registam grande popularidade a partir de meados séc. XVIII e séc. XIX. É um meio acessível e sedutor, registando o essencial da personalidade do retratado ou dos atributos do referente. É versátil e por isso resposta fácil a qualquer estilo. Ainda que tecnológica e funcionalmente segregados (em papel, vidro, esmalte…aplicações domésticas, publicidade, jóias…) os produtos em causa remetem para o processo que os originou: a economia da forma delega no contorno a função de informar, descrever, sugerir o que representa; da omissão de informações resulta o estímulo da imaginação do leitor.

A Etienne de Silhouette se atribui, em duas versões, a responsabilidade sobre a prática e o nome: uma derivada do seu plano economicista, outra que o define, por adição à primeira, como exímio executante. Houve muitos outros, franceses, ingleses e até americanos (embora o papel só tenha começado a fabricar-se no seu continente no final do séc. XVII): Miers e Field, William Hubard, Louisa Kerr, Samuel Metford, William King, William Brown… Muito nos foi chegando através de publicações, de documentos de peças museificadas; através da preservação de modos genuínos, mais ou menos assediada pela indústria conserveira de subprodutos estimulados pelo turismo ou pelo webnegócio.

Verificadas influências, coincidências, diferenças, sincronias e diacronias, a atemporalidade de um processo que retoma sempre as suas bases conceptuais e técnicas (necessariamente reconfiguradas – pela tecnologia informática) foi sendo determinante no imaginário colectivo, seja associado à infância, às tradições populares ou à arte. Referência incontornável é Franz Cizek, pedagogo que viu rápida e mundialmente projectados os seus princípios e instrumentos no advento do século passado. Na sua revolução pedagógica, o recorte concorreu, como outras operações elementares de desenho, para uma plataforma de promoção de valores pedagógicos e plásticos do desenho infantil basilar para educadores, artistas, psicólogos. Seguidores directos ou indirectos como Rothe, Lowenfeld, Shaw, Katz… estabeleceriam vias de franco desenvolvimento nesta área. Ainda sobre a infância, anote-se as sínteses que Andersen produzia, recortando papel inicialmente dobrado e depois estendido, para assim finalizar o recorte com assimetrias. Fazia-o na comunhão de propósitos com a sua escrita.

[actos x – actos]

 “Quando iniciamos un gesto vamos siempre ala búsqueda de un nuevo estado de las cosas (…) iniciamos un viaje hacia aquello que es exterior a nosotros mismos, en este viaje sucede  una doble transformación; la que se produce en el papel, y la que se produce en nuestra consciência” Juan Molina

Um gesto evoca tudo o que o seu diagnóstico permite descobrir. O rasto desse gesto comporta toda a experiência ontológica e antropológica que possa ser através dele argumentada. O suporte, os materiais, os instrumentos, todos eles estão carregados de marcas que já significam antes do significado que adquirem com novos discursos. Pensar o objectivo, a matéria, o meio e o modo, é, por isso, uma necessidade de quem produz. Aqui se bifurcam questões que divorciam, ainda que com comunhão de adquiridos, arte, design e artesanato, por exemplo. Desde os recortes populares chineses ao automatismo surrealista, desde as pinturas do Levante espanhol às sínteses de Matisse, as referências são ao mesmo tempo ressonâncias e argumentos, elementos todos eles importantes na reflexão e no ensaio de um discurso específico.

Gémeo Luís é pseudónimo. Luís Mendonça, designer e docente na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e na ESAD- Escola Superior de Arte e Design de Matosinhos, desenvolve um trabalho diversificado, onde as artes plásticas vêm actuando, ora ressonantes, ora declaradas em objectos entre o mobiliário e a escultura. Trabalha a ilustração simultaneamente como meio e fim sem sacrifício entre um e outro, sem prejuízo de nenhum deles. Como meio no privilégio do objecto livro, como fim pelo carácter objectual e autónomo do resultado (a este nível, o autor tem abordado bi e tridimensionalmente o seu vocabulário).

Gémeo Luís desenvolve uma ilustração cuja densidade oficinal está curiosamente longe de ser o mais complexo do trabalho. É que, desde o caderno de anotações, armazém diário de notas da mais variada ordem, de bosquejos, de esquissos, de esquemas, de contornos, o trabalho é mantido em questionamento até ao desenho-síntese, em papel craft cortado com faca gráfica.

A ideia de processo é transversal ao seu empenho e desempenho, posto que a sua escrita já atravessou diversos meios e materiais, numa prática experimental assumida. Às horas de paciência do labor que estes desenhos-ilustração possam sugerir aos menos avisados, Gémeo Luís contrapõe horas de impaciência de atelier, onde a oficina ocupa apenas o seu lugar.

Observar os resultados é uma experiência de sinestesia, convocado o corpo perceptivo do observador. Numa prática informada e instrumentada, configuram-se espaços e figuras onde, por oposições diversas como: pequeno- grande, positivo-negativo, enfático-excluido, nivelado-acentuado e por estratégias como: ambiguidade espacial, uso do plano como espaço inventário e/ou perspéctico, perspectivas múltiplas, descontinuidades, sobreposições, síncopes, variações e inversões, tensões e distensões entrópicas, tudo sucede entre a noção de disciplina e a disponibilidade para o desvio. Tudo concorre para a coerência e eficácia.

Cada ilustração de Gémeo Luís conta várias histórias. Para além do destino polissémico das imagens, refiro-me ao seu mapa de múltiplas viagens. Idas e voltas entre leituras e leituras: das histórias do texto a ilustrar, das histórias – outras, das histórias – suas, no inventário, sempre diferente, das formas que persegue.

À nossa leitura dos seus mapas, não será estranha a sua vivência de três anos em Macau (onde coordenou no Instituto Politécnico a implementação do Curso de Comunicação Gráfica). Dois dos mais recentemente livros ilustrados por Gémeo Luis, A palavra que Voa (com texto de João Pedro Mésseder, Editorial Caminho, 2005) e O Quê Que Quem – Notas de Rodapé e de Corrimão (com texto de Eugénio Roda, Edições Éterogémeas, 2005) poderão, para além das ilustrações publicadas nesta revista, dar alguma utilidade a estas notas de aproximação ao seu trabalho.

Emílio Remelhe