Poucochinho Vermelho contagiado de novo
A pedido de muitas famílias com esperança nas maneiras da criança, Gémeo Luís lançou o mote das brincadeiras de anteontem e Eugénio Roda recontou um conto a galope, mais ou menos p´ra ontem.
Queria contagiar-vos a história do Poucochinho Vermelho. Vou contá-la depressa e com vagar, como se fosse um escaravelho. Correndo, sem parar, como uma seta ou pedalando até partir a bicicleta, roubando uma maçã e dando à sola ou jogando a manhã toda à bola, lançando o pião p´la tarde fora ou jogando ao prego a toda a hora, pulando a corda ou saltando ao eixo até bater com o queixo, meninos e meninas caíam redondos, cansados, suados e corados. Só aquele rapaz parecia não brincar, pois não havia meio de corar. Por isso lhe chamavam Poucochinho Vermelho. Então, pensou o escaravelho: como contagiar de novo Vermelho, por Poucochinho que fosse, com um jogo que lhe tirasse o ar delico-doce?
Um dia, com alguma ousadia, disse a mãe ao Poucochinho Vermelho: leva ao avô este caldo, mas tem cuidadinho, convém que chegues são e salvo! Isolado mas animado, o avô recolhera ao outro lado da moradia. Ora, fosse verão, outono, inverno ou primavera, uma coisa o velho apreciava com grande euforia: uma boa sopa fria. A distância real era coisa pouca mas, o percurso, uma aventura louca: para chegar com a sopa arrefecida, Vermelho não teve outra saída senão ir e sorrir, pelo caminho mais longo, pelos interstícios do volume oblongo. Ora, para não pensar em monstros, fantasmas ou bichos-papões, Poucochinho galgou as divisões com brincadeiras, suas preciosas companheiras: quartos, salas, corredores, escadas, cave, mansardas ou águas furtadas, ora abrindo a pestana ora fechando a persiana.
Brincou às Escondidas nos armários, entre silêncios e gritos extraordinários. Sala após sala com entrega, viu-se no meio da Cabra-Cega. No quarto da Macaca, grande zona de risco, o pobrezinho parecia um pisco saltando ao pé-coxinho. Pelo corredor, na Corrida de Sacos, o coitado pulou como os macacos. E, rolando o Berlinde escada abaixo, chegou ao quarto do avô como se fosse um brinde. E assim Poucochinho se viu do outro lado, agora sim, bem avermelhado. O que não se notou, pois ia mascarado.
Talvez por isso ou porque fosse um tanto zarelho, o avô o tenha confundido com o irmão mais velho. Recebeu-o de cara mascarada e de tez disfarçada. E o neto não disfarçou o olhar inquieto. Porque, afinal, era grande a distância facial. Avô, por que tens as orelhas tão grandes? Porque sou o Príncipe com Orelhas de Burro! Avô, por que tens o nariz tão grande? Porque sou o Pinóquio! Avô, por que tens as mãos tão grandes? Porque sou Eduardo Mãos de Tesoura! Avô, por que tens a boca tão grande? Porque sou a Pequena Rã da Boca Grande! Avô, por que tens os olhos tão grandes? Porque sou Moby Dick! Avô, por que tens os dentes tão grandes? Porque sou o Lobo! Mau, mau, afinal és o lobo mau? Bom, bom, afinal sou o lobo bom! E o avô está bem e o caldo está bom? Esta sopa já é de ontem ou de anteontem, mas conta-me uma história meu bom neto, que eu como a sopa toda de memória e não digo a ninguém. Prometo!
Habituado ao barulho das paredes-meias, o avô sorveu a sopa com onomatopeias, sschlepp, scchhhlep, ssschllep. E, o neto, com a cabeça a latejar de ideias, começou a contar uma história do tempo em que os vegetais falavam, ao relento, nos quintais. Do tempo em que as colheres de sopa eram mais cheias. Não importa o que eu acho, mas ainda bem que não resolveram a coisa com gaspacho.
Ilustração Gémeo Luís . Texto Eugénio Roda . 01-06-2020