João Mandrião e o distanciamento crucial

A pedido de um pai de família, Eugénio Roda retomou um filhinho da mãe achado num conto nacional e Gémeo Luís deu-lhe um novo visual.

Aos quinze anos, João era ainda menino de colo. E não havia solo que pisasse pelo seu próprio pé. Bonito não é? Outrora, ao colo da mãe, mamara, adormecera e acordara. Agora? Pesava, importunava, magoava. E em a mãe querendo tirar-lhe o colo, levava-o, amiúde, a tiracolo. Porém, agravava o seu torcicolo. Em vão tentaram pôr-lhe botas para o pôr no chão, pois o matulão batia o pé no peito da mãe, dizendo que não. Botaram-lhe, então, o cognome Mandrião. Assim confinado ao transporte, fosse de colo ou doutra sorte, o rapaz vivia a sua paz de guerra com quantos, lá na terra, tentavam promover autonomia, insistindo no distanciamento entre mãe e cria. O seu único plano era dar a fulano e a sicrano um destino submisso, ter comandos à distância, tropas ao seu serviço: e um grande estatuto sem fazer puto.
Dois rapazes levaram João à lenha. Pode ser que venha – pensaram. Mas, lá está: le-va-ram-no-pois-ele-ir-propriamente-não-foi-e-se-foi-foi-apenas-levado. Ainda se fez rogado, querendo ir a cavalo mas os rapazes, não o tendo, lá foram prometendo às costas levá-lo. Às costas trazê-lo é que nem cavalo nem camelo! Como assim? No pinheiral, os rapazes vergaram a medula espinhal. Mas o terceiro nem sim nem sopa, habituado que estava a ter vento na popa. A bem dizer, como sempre fizera, nem se esforçou muito pra nada fazer. Fizeram-lhe os outros o feixe de galhos com os nervos em frangalhos e o mandrião, já sentado sobre ele, sofreu o primeiro abanão: queres voltar vais à pata, que nós não somos filhos de diplomata! E assim o deixaram na mata. Deixemos o feixe, passemos ao peixe. Três noites, três dias ao pé do riacho e, diacho do moço, nem partia uma palha nem mexia um osso.
E um peixe saltando lhe disse: «Digo-te eu, João, pelo bem e amor que te dão, pega em mim e bota-me à água e quando sentires qualquer mágoa, fecha meia mão direita e chama por mim, que eu estarei à espreita e te darei, de mão beijada, tudo o que me pedires de mão fechada». Percebemos o peixe, voltemos ao feixe. João lá fez ao peixe o favor de aproveitar o ensejo e pediu o desejo. Foi só pôr a mão na tal posição e o feixe de lenha em que estava sentado voou, encantado. E assim João foi ter a casa sobrevoando todas as casas sem ter asas.
O tempo passou e o feixe de lenha na lareira queimou e tudo se esqueceu. Mas o peixe estranhou a maneira como tudo acabou. E de novo apareceu a João Mandrião e o viu, qual sultão, na cama estirado: «Pergunto-te eu, João, pelo bem e amor que te dão, porque não usas a mão, senão para trabalhar, pelo menos para fechar e assim desejar tudo o que queiras e eu te possa dar?».
«Sabes», respondeu João, bocejando de tédio, «tens bom remédio: se estás tão interessado na minha mão, vem tu fechá-la! Eu é que não! Se o interesse é teu, porque há-de o trabalho ser
meu?». E com grande mágoa, o peixe percebeu: «pelo menos, volta a pôr-me na água». Mas João não fez caso e o pobre animal ali mesmo morreu. É o que acontece aos peixes que insistem em dar-se a quem não pesca nada nem nada mesmo que esteja a afogar-se.

Texto Eugénio Roda . llustração Gémeo Luís . 28.09.2020