Uma publicação surpreendente a todos os níveis

“Resultado da parceria entre Eugénio Roda e Gémeo Luís, O Quê Que Quem – notas de rodapé e de corrimão, editado em 2005 pelas Edições Eterogémeas, revela-se uma publicação surpreendente a todos os níveis, desafiando o leitor a várias – e sempre irrepetíveis – leituras. Do ponto de vista material, é evidente o carácter diferente – quase insólito – da publicação. O formato rectangular e a considerável diferença entre a largura e a altura do livro funcionam, logo ao primeiro contacto, como elementos que acentuam a estranheza do objecto, de manuseamento difícil, sobretudo para os braços e as mãos de um pequeno leitor.

A desconfiança poderá ser acentuada pelo título, claramente aliterativo, promovendo dúvidas e interrogações. O subtítulo – “notas de rodapé e de corrimão” – aponta, em simultâneo, para o cariz fragmentário do texto e para o universo da casa, pela menção de dois elementos que têm em comum, além da utilização da madeira como material mais recorrente, o facto de também serem compridos e muito estreitos, como o livro em causa. Além disso, trata-se de elementos vulgarmente tidos como acessórios, pouco relevantes ou mesmo marginais mas que desempenham importantes funções ao nível do apoio e da segurança (como é o caso do corrimão) e da protecção (o rodapé), o que configura um exemplo de retórica de modéstia.

Mesmo do ponto de vista textual, as “notas rodapé”, também pela localização que ocupam na composição da página, assumem essa condição de marginalidade (mas também de apoio, às vezes no sentido de fundamentação e sustentação) face ao texto principal, exigindo um pacto de leitura específico, marcado pela ausência de sequencialidade e pelo seu carácter esporádico, momentâneo e entrecortado. A ilustração da capa (que também se estende à contra-capa) esclarece, em alguma medida, acerca da necessidade de abrir o livro e seguir alguns dos fios interpretativos que dele se desprendem.

A presença de várias personagens que tanto parecem escutar a leitura que é feita como sair do próprio livro e serem, por isso, criação/resultado da leitura apelam a um acto de ler partilhado e comunitário, verdadeira comunhão de vozes, saberes e de afectos. Neste sentido, a técnica de ilustração de Gémeo Luís, com recurso ao recorte minucioso de elementos e ao jogo entre a luz e a sombra, o movimento e a quietude adapta-se de forma plena a um texto repleto de sugestões.

Motivadas pelo texto ou suas motivadoras, as imagens não se esgotam no acompanhamento da mensagem textual e convocam, com assiduidade, motivos e situações ligadas ao movimento, à mobilidade e sobretudo à viagem. É assim que lemos, por exemplo, a presença de vários meios de transporte, como automóveis, trotinetes ou bicicletas, mas também as bagagens que algumas personagens transportam consigo. Mas a ideia de viagem que as imagens promovem não se esgota no seu significado literal de deslocação ou trajecto.

Em muitas imagens, o percurso sugerido é feito através da imaginação, das leituras e dos próprios sonhos, como os inúmeros traços – mais ondulantes ou mais angulosos – que preenchem grande parte dos espaços em branco, unindo personagens e objectos permitem constatar. A posição contemplativa e observadora de muitas personagens – às vezes mesmo boquiabertas – perante o espectáculo que as rodeia, acentuando o cariz movimentado e dinâmico das ilustrações, plenas de vida e acção. A componente textual, por seu turno, caracteriza-se pela condensação e pela circularidade dos breves textos, reduzidos ao essencial.

É evidente a aproximação a um discurso de tipo dicionarístico, que joga com a procura dos significados das palavras e com os seus múltiplos sentidos, como é o caso dos afectivamente subjectivos. O elo coesivo reside nos elementos da família e na explicitação dos principais graus de parentesco. A ordem parece ser arbitrária, à excepção do final da publicação, onde são definidas as palavras “mãe”, “semear” e “querer”, promovendo claramente a abertura do texto e, até, a polissemia das palavras seleccionadas.

Privilegia-se uma estruturação de tipo paralelístico, com reminiscências do “leixa-pren” tradicional. As repetições de sons, de palavras e de estruturas sintácticas reforçam o carácter circular do texto, que se desenvolve em torno de conceitos que vão sendo convocados um após o outro, como contas de um colar infindável. O texto, assim redondo, vai remetendo muito para si mesmo, possibilitando leituras necessariamente subjectivas. Desta forma, não estamos perante uma narrativa com as suas diferentes sequências, mas um texto fragmentado cuja leitura não obedece forçosamente a uma ordem precisa e que pode ser feita das mais diversas formas.

A opção pela inclusão da tradução em língua inglesa diversifica os destinatários preferenciais e as leituras possíveis, introduzindo os pequenos leitores no jogo linguístico. Assim, a componente textual, como a imagética, parecem promover uma leitura estilhaçada, uma vez que funcionam como alusões, sugestões que os leitores (de preferência também em família) terão que concretizar e objectivar, de acordo com as suas experiências pessoais. Desta forma, um livro dá origem a muitos momentos de leitura, de diálogo e de encontro, motivados pelo espanto e pela surpresa que este objecto – também obra de arte – proporciona.”

Ana Margarida Ramos