Recortes de papel e de linguagem: ALMA ÑAQUE, de Eugénio Roda e Gémeo Luís

Mestre na arte do aforismo poético, a que eu preferiria até chamar lúdico-poético, Eugénio Roda é também perito (termo de que não gosto) no campo do jogo linguístico – o que, como se sabe, é sinal de um surplus de inteligência, muito útil na criação artística em geral e na criação literária em particular. Essa ludicidade assenta por exemplo na palavra-mala, na decomposição do signo linguístico, nos jogos homofónicos, homonímicos e paronímicos, na polissemia, na recriação da fraseologia e do idiomatismo populares, e ainda na exploração do erro e de aspectos fónico-rítmicos da linguagem. Na literatura portuguesa contemporânea, não resisto a lembrar, a propósito, dois grandes mestres neste domínio, já desaparecidos mas na verdade sempre a reaparecerem nas nossas vidas, nas nossas leituras – são eles Alexandre O’Neill e Manuel António Pina; não resisto, por outro lado, a assinalar outro «jogador emérito» da actualidade: Afonso Cruz. E vale a pena recordar também, de passagem, que o nonsense vitoriano, o projecto OULIPO, a publicidade, o surrealismo e outros -ismos das vanguardas do início do século XX aplanaram o terreno para a plena aceitabilidade desta pulsão lúdica nos dias literários que correm.
A par de tal característica da sua escrita, encontramos em Eugénio Roda uma inclinação para géneros/subgéneros textuais em que mais facilmente esta sua arte se concretiza: o micro-conto e o conto curto, a fábula, o poema em prosa breve, o inventário e a listagem, a dissertação também breve que quase assume, por vezes, um pendor ensaístico e reflexivo, e outras composições de tipologia inclassificável… Objectos textuais de que a parodização e o humor raramente estão ausentes e em que, aqui e acolá, um subtil sentido crítico, nunca demasiado acerado, se manifesta, embora o autor seja também um inteligente e divertido cultor do nonsense pelo nonsense.
De tudo isto encontramos um pouco em ALMA ÑAQUE (Edições Eterogémeas, 2020), cujo título por si só é revelador de um tanto do que acima fica dito (na guarda colada à capa, lê-se: «Ñaque = Conjunto ou monte de coisas inúteis ou ridículas.»). O livro é um pequeno poliedro linguístico, feito de diversidade. Um rumpus verbal a que, além do mais, se junta a presença de palavras em muitas e variadas línguas (um desafio à leitura), colocadas na margem direita, perpendiculares ao limite superior e inferior da página (uma por página de texto); e a que se soma ainda um micro-comentário em letra mais pequena após cada fragmento (porque existe de facto algo de assumidamente fragmentário nesta poética e nesta obra, como aliás noutras – e muitas são – de Eugénio Roda).
Nota-se alguma coisa de salutarmente infantil, inaugural e irreverente (retrabalhado obviamente pela cultura) em muitos destes exercícios poético-linguísticos. E daí haver quem os confunda com literatura para a infância e a juventude (as próprias referências intertextuais apontam por vezes nesse sentido), muito embora isso não signifique que não possam vir a ser lidos por um público infantil ou juvenil ou utilizados em contextos de mediação da leitura por um professor ou por um animador. Como não achar delicioso, por exemplo, o texto «Mãe é Mãe» (p. 68)? Como resistir a usar numa aula de filosofia o texto «És o que foste serás quem és» (p. 80)? Como não recomendar «Folhear e desfolhar vai do começar» (p. 94) a muitos bibliotecários, editores, professores, jornalistas e a Maria de Fátima Bonifácio?
Na impossibilidade de reproduzir aqui alguns exemplos do que afirmo, deixo apenas uma composição mais curta, convidando à leitura gozosa deste livro. Esse texto é «A manha» (p. 10), no qual se exploram linguisticamente coisas diversas (a paronímia, o erro…):

A manha sai cedo de casa para nos encontrarmos.
A manha espera por mim que eu logo volto.
A manha almoça comigo, amanha o peixe logo pela manha.
Amanhã levarei a errata para deixar em acta.

É evidente que o prazer desta leitura é potenciado pelas ilustrações de Gémeo Luís e pela concepção gráfica do seu alter-ego, Luís Mendonça. Com 114 páginas, em papel branco (de elevada gramagem) que permite dar o devido destaque às imagens, impressas numa cor entre o azul e o verde, o volume faz uso da capa dura, com encadernação de cartão revestido a tecido laranja e traz uma ilustração gravada na capa (um livro parcialmente antropomorfizado).
Com um formato rectangular de 20,50 x 22,5 e uma fita marcadora de tecido, é inegável o aspecto nobre e sedutor do objecto (a começar pelo tacto) a contrastar, provocatoriamente, com as coisas «inúteis ou ridículas» de que falam os textos (ou que são os próprios textos) segundo a epígrafe/definição inicial já citada.
De grande dinamismo visual, as ilustrações, como sempre acontece em Gémeo Luís, são plenas de movimento e capazes de transmitir sugestões psico-emocionais apenas sugeridas pelas palavras ou pela interpretação subjectiva delas. Este aspecto é notável, visto estarmos perante a difícil técnica em que o liustrador é mestre: o recorte finíssimo em papel após desenho com digitalização do mesmo e coloração digital posterior – técnica e material reveladores de influências orientais. O resultado é uma sucessão de imagens de grande onirismo e sentido de humor, marcadas pela hipérbole e bem condizentes com os conteúdos e as formas de expressão dos textos de Eugénio Roda.
Em suma, uma singular dupla de criadores, cujos objectos artísticos continuam a surpreender e se recomendam.

José António Gomes
IEL-C – Núcleo de Investigação em Estudos Literários e Culturais da ESE do Porto