Há um Bicho do Conto a contar [com os] livros da dupla

Andreia Brites, mediadora de leitura e responsável pela secção infantojuvenil da revista mensal digital Blimunda (Fundação José Saramago), tem visitado as Eterogémeas com o seu Bicho do Conto. Sobre o livro Ssschlep escreveu no seu blog:
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Miffy e Gémeo Luís, ou algumas questões sobre ilustração

Estive na 6ª feira na Fnac do Chiado, onde fui buscar o Ssschlep!, do Eugénio Roda (texto) e do Gémeo Luís (ilustração), que tinha reservado para uma última prenda de Natal. Depois de cumprida esta tarefa pude ler o livro com calma, sentada na secção infanto-juvenil. Ssschlep! é uma história sobre um menino que não come a sopa, e altera o seu comportamento a partir de uma preciosa informação que recebe dos pais.

As ilustrações são, como sempre, muito especiais. O preto traça e preenche as figuras que vão ganhando vida e movimento a cada nova página, aproximando-se, tocando-se, fundindo-se entre si. Neste caso, o mini cosmos do lugar à mesa torna-se o centro de todas as experiências que envolvem o menino, a mesa, o prato, a colher e a sopa.
Quando acabei de ler o livro, percorri, como é hábito, as estantes da secção. Eis senão quando me deparo com os pequenos livrinhos da Miffy, a coelha, de quem me lembro de leituras de tenra idade (aquelas em que ainda se lê apenas com a imaginação). O traço curvo era (ainda é) perfeito, a preto, cheio de laranja, azul, vermelho, amarelo ou verde. Apesar da simplicidade dos desenhos, com poucos elementos, estes livrinhos davam-me um prazer que hoje recordo mas não consigo descrever.

Gémeo Luís ou Miffy? Ruptura ou tradição na ilustração? Será que qualquer tipo de ilustração é útil à leitura? Deveria haver limites para o não-representativo? Será que a principal razão de ser da ilustração para crianças deverá continuar a ser complementar, exemplificar a narrativa?

Creio que a arte, quer se dirija a crianças, quer a adultos, não deve ser pensada em função da sua recepção, do seu efeito, da sua utilidade. É evidente que há ilustrações mais acessíveis que outras, mais óbvias, mesmo que não sejam representativas. É evidente que cada criança, misteriosamente, se afeiçoa a imagens, a livros, sem que saibamos porquê, porque não há uma lógica intrínseca à escolha.

O mais importante é, na minha opinião, que a criança contacte com diversas imagens, diversas técnicas, diversos tons e cores, diversas abordagens a elementos que reconhece, e elementos para os quais não encontra correspondência.

A ilustração e a música, serão os primeiros discursos simbólicos com que a criança contacta. O desenvolvimento da sua criatividade, do seu sentido estético e crítico passam por um convívio curioso mas pacífico com o que não se percebe, com o que não se consegue arrumar ou catalogar segundo uma ordem lógica; a par do representativo. Dar à criança asas para voar é mostrar-lhe, sem medo de que não goste ou não perceba, várias possibilidades de ver o mundo.

E, a propósito do Plano Nacional de Leitura, O Bicho do Conto volta a abrir Ssschep em público, anotando a sua recomendação no Plano para o 5º ano do 2º ciclo, na categoria de leitura autónoma:
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Ssschlep quando a boca sorve a sopa da colher.

Este é o momento glorioso em que o esforço é recompensado: quando a criança come finalmente a sopa. O álbum tenta, página a página, alcançar o sucesso de realizar a onomatopeia. O que efectivamente acontece, e não é mesmo no final. A criança leva a colher ao prato, e do prato à boca várias vezes, tentando constatar a veracidade da história que a mãe lhe revela: os legumes falam.

A criança não os ouve… A mãe explica: falavam, antes de serem passados pela bruxa da varinha mágica. O verde do puré de legumes (e da capa do livro) é desconstruído na tentativa de se encontrarem os ingredientes originais que o fizeram puré, e assim restituir à sopa a liberdade dos legumes.

A plurissignificação do léxico aproxima o quadro familiar da refeição da própria invenção, traçando uma ambiguidade referencial no discurso da mãe. Assim se introduz o elemento lúdico que enriquece o texto. Mas o efeito de estranheza comunicacional não se fica pelo léxico.

Expressões como: “O que te diz a sopa de alho francês” ganha um novo sentido, fora do reconhecimento comum que significa se gostas ou não de sopa de alho francês. O verbo dizer tem também um sentido denotativo obrigatório, já que o alho francês também fala, agora. Logo, o que disser, será em língua francesa… O jogo semântico inverte o jogo entre o óbvio e o idiomático, obrigando o leitor a reflectir sobre o uso das expressões que utiliza diariamente.
As ilustrações ampliam esta relação comunicação-invenção. A criança, a sua mão, a colher e o prato estão ligados pelas linhas e espaços da mesa. Através desta ligação original, a ilustração ganha uma dinâmica quase animada de alteração das formas e deslocação das linhas no espaço.

É uma espécie de ilustração em devir, porque a cada nova imagem há um vestígio da imagem anterior e um indício de mudança na que se seguirá. Inicialmente esta umbilicalidade acontece apenas no espaço físico que a criança, sentada, ocupa, e o tampo da mesa onde estão o prato e a colher. À medida que os legumes ganham vida numa memória inventada pela mãe, também o prato liberta o seu conteúdo que voa em movimentos circulares.

Quando a criança começa a empatizar com a ideia de que a voz dos legumes foram silenciados pela bruxa da varinha mágica que os passou (passar é uma das palavras usadas com dois sentidos) as linhas emaranhadas que emergem do prato enlaçam-se com a mesa, a cadeira e a criança, ocupando por fim um lugar debaixo da mesa. Um esconderijo, uma inversão?

A dupla Eugénio Roda (texto) – Gémeo Luís (ilustração) funciona como poucas no panorama nacional, tal é a sua identidade, a sua voz própria. Busca e encontra matéria para desconstruir, mostrando as suas partes em interacção. Palavra e imagem não se tornam impossíveis de alcançar. Pelo contrário, é muitas vezes o (re)encontro com o mais simples que torna palavras, frases, figuras, movimentos, autênticos momentos poéticos.

Andreia Brites