Sonhos de uma coleção em viagem

Mais de uma centena de ilustrações reuniram-se em viagem. Numa mostra que integra ilustradores de países como Portugal, Itália, China, Espanha, Alemanha, Japão, Irão, Canadá, República Checa, Uruguay, França, Argentina, Polónia, Ucrânia, Holanda, México ou Rússia. No texto para a exposição, Emílio Remelhe escreveu:

Sonhos com Moldura: Livros, Momentos, Lugares, Pessoas.
Por muito que digamos com acerto que a ilustração é um meio, ela acaba (e pode começar) por se afirmar também como um fim em si: vale enquanto desenho, enquanto objecto. O segundo estatuto não tem que retirar competências ao primeiro, são conciliáveis. O respeito (e até o culto) pelo original não é impeditivo de uma consciência funcional, de uma produção e uso comprometidos com objectivos muito concretos.

Tanto mais que, na base, a ligação entre quem realiza ou quem utiliza a ilustração, seja no plano intelectual, seja afectivo precisa do “corpo” do desenho. Quero dizer: há uma ligação que não se satisfaz com a substituição do desenho pela sua reprodução no álbum. A expressão gerada no encontro entre os materiais, instrumentos e suportes, o gesto do autor, as suas marcas, diria, “em primeira mão”, e a sua reprodução no álbum não se substituem. Em suma, seja na origem (no desenho) seja no final (na publicação) encontramos os suportes vitais da ilustração enquanto meio de enriquecimento da cultura visual.

Poderia não chamar a esta grande quantidade de desenhos uma colecção. E não é que eles estejam desligados da obssessão que caracteriza qualquer coleccionador, do cuidado ou paixão comuns a qualquer colecção, muito pelo contrário… mas a questão aqui é outra: ela está marcada por um conjunto multifacetado de características.

Agregadas, por um lado, a uma forte relação com a actividade editorial, com os livros para público adulto e infantil (que, embora especialmente motivado pela parte visual, privilegia o livro como produto de um processo orquestrado, sem descurar nenhuma das partes); por outro lado, associadas a uma vivência (diria supervivência) em torno da ilustração: Luís Mendonça lecciona na Faculdade de Belas Artes do Porto e na ESAD- Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos e em ambas se ocupa da disciplina de ilustração, organiza projectos e exposições entre pares e o seu pseudónimo Gémeo Luís é, ele próprio, ilustrador.

Reunindo os diferentes planos, ilustrador, professor, designer, entre aulas, livros, exposições… é visível a posição de todos eles no primeiro plano, sem minorizar nem enfraquecer nenhum deles, numa exigência transversal. Na verdade, nem é de planos que se trata, mas de “superfícies de revolução”. Por isso o termo colecção me surge muito contido ou estático. As poucas “permanências” que lhe reconheço resumem-se à qualidade, enquanto critério, ao natural exercício de preferências, à modelação de circunstâncias.

De resto, tudo se envolve e desenvolve numa dinâmica funcional, polivalente, que não se compadece com o mero plano pessoal, de si para si, na reserva parietal da casa ou na vaidade da parede pública. Vejo o Luís Mendonça como uma interface, não como um coleccionador.

Esta é a primeira grande reunião destas imagens. Comporta desde a colecção Curto – Circuito, com que a Editora Eterogémeas nasceu, até à recente publicação que envolve ilustradores praticamente de todo o mundo. Com o mesmo grau de importância qualitativa que não deve distinguir pequenos ou grandes projectos, nem idolatrar o longínquo em detrimento do local.

Estas imagens são marcadas pela ideia de trânsito: têm como meio de transporte literal e metafórico o afecto, a partilha, a sinergia, a confiança em projectos sérios e duradouros, ainda que sensíveis, vulneráveis, adaptáveis às vicissitudes – por isso resistentes, sem concessões na sobrevivência da sua qualidade. Cada um destes livros tem por inerência uma exposição potencial.

E estas exposições estão preparadas para estender o diálogo em torno dos livros, no encontro com o público e com os mediadores culturais. Têm-se relacionado com bibliotecas municipais e escolares de diversos pontos do país, com algumas edições da feiras do livro do Porto, etc: como divulgação, discussão e trabalho sobre o livro, estímulo à edição… e nunca como apêndice decorativo, na aproximação a valores consistentes, na descoberta e proposta de valores emergentes.

É neste contexto de projectos em contínuo que surgem momentos como este, são estas as circunstâncias que motivaram esta mostra de grandes dimensões. E não é por acaso que acontece através do Centro de Arte de S. João da Madeira, que habituou a cidade a projectos artísticos de eleição. Esta mostra é uma réplica (desta vez numa dimensão sem igual, em quantidade, diversidade, e novas qualidades) no espírito de colaboração assíduo e fértil que se tem verificado desde há algum tempo, entre o Director do Centro de Arte e Luís Mendonça.

Colaboração que proporcionou, em particular, a inclusão da cidade na rota das extensões da Ilustrarte, Bienal Internacional de Ilustração (sediada no Barreiro, de responsabilidade de Eduardo Filipe e Ju Godinho, que têm, como mentores do projecto e comissários das exposições, alargado a sua acção nacional e internacionalmente com uma disponibilidade incansável).

É importante traçar algumas linhas de justo elogio, no texto frequente da pobreza, da reclamação, sempre tão gritante (até nos seus erros ortográficos). Era bom que o discurso da reclamação ou da pobreza, subtil ou gritante, interesseiro ou distraído (que todos achamos caduco mas que afinal é sempre recorrente) dispensasse algumas linhas de justa atenção para com o que de melhor se faz à nossa volta. Uma exposição, um encontro, etc, são também pontos de situação; e se um ponto de situação é um instrumento de trabalho para construir futuros, tem que assentar em alguma liquidez e clarividência.

Continuidade e(m) ascendência são, por isso, dois atributos raros. Este serviço entusiasmado à promoção da ilustração, do livro, da leitura, que tem ganho raízes no Centro de Arte de S. João da Madeira, tem até agora proporcionado à cidade e particularmente à comunidade escolar, o contacto privilegiado com a ilustração contemporânea, com os autores de referência nacional e internacional.

Num entendimento claro da relação necessária e sensível entre o local e o universal, na consciência de trazer em mãos, não um “mapa do tesouro”, mas um “mapa da riqueza” cultural, lúdica, social, pedagógica: nesta exposição estão optimizadas, de forma, histórica e ao mesmo tempo despretensiosa, as condições para aulas de campo, para espaço lúdico, para conversas, etc.

Esta exposição é uma espécie de paisagem. E, como em qualquer paisagem, podemos ficar aqui ou acolá, à distância, a ver o panorama, ou avançar até cada uma das janelas e descobrir novos panoramas: entrar no seu clima ameno, exacerbado, tempestuoso…

Uma coisa é certa: caminhamos ou ficamos parados nesta paisagem com a sensação de que o momento é infinito mas que ao mesmo tempo se esgota. Como acontece nos lugares cuja raridade nos diz em surdina que devemos aproveitar o mais possível, sem arredar pé. Ou que podemos voltar mais logo, com quem gostaríamos de partilhar a aventura da descoberta, do conhecimento, da festa dos sentidos.”